Escravidão na Itália

Foi no início do verão de 2000 que tudo aconteceu. Morando na Alemanha e ansiosos para finalmente conhecermos a Itália, minha irmã e eu procuramos pela internet alguma oportunidade de viver e trabalhar em meio à “buona gente”.

Com muita sorte, encontramos um anúncio de Fabio, um cara de uns 30 anos que estava recrutando pessoas para trabalharem quatro horas diárias em seu sítio em troca de cama e comida.

Segundo o anúncio e os e-mails que trocamos com o simpático italiano, tudo seria perfeito. A propriedade ficava numa região montanhosa próxima de Urbino, uma bela cidade universitária no leste do país. De acordo com o Fabio, ele e os pais produziam uma série de alimentos “biológicos” e viviam em harmonia com a bela natureza na sua propriedade.

Além do mais, combinamos que, por cada hora de trabalho extra, receberíamos 8 dólares. Assim, decidimos passar três agradáveis meses ali e ainda juntar uma grana para a próxima etapa do nosso ano de mochilão.

Bem-vindos?

Quando chegamos em Urbino, telefonei conforme tínhamos combinado e ficamos esperando Fabio ir nos buscar. Quarenta minutos depois, um carro foi estacionado na nossa frente. “Será que é ele?”, nos perguntamos. A porta do motorista se abriu e um sujeito saiu. Sem nos cumprimentar, abriu o porta-malas, olhou para nós e disse: “Andiamo!” Parecia que estávamos no início de um filme de terror como O Albergue ou O Motel.

Aquele sujeito vesgo e de poucas palavras era mesmo Fabio. Depois de percorrermos 20 km em silêncio, chegamos ao sobrado em cujo segundo andar ele vivia com os pais. Pareciam o gigante a bruxa da floresta: um senhor troncudo de mãos grossas e com um dedo a menos, e uma senhora com olhar maligno que tentava dissimular se fazendo de boazinha. Mas não éramos bobos.

O lar

Nosso quarto tinha uma cama de casal que afundava no meio. Toda a comida era regulada. Era tão grave que minha irmã decidiu fazer dieta para ceder um pouco de suas porções para eu não passar (tanta) fome. E tinha algo ainda mais grave: os três fumavam. Faziam isso inclusive na cozinha, enquanto preparavam as refeições e logo depois de comerem, enquanto assistiam a futebol na pequena televisão ao lado da mesa. Me lembro como se fosse ontem da cena da bruxa com o cigarro na boca enquanto preparava a salada de alface.

A paisagem natural da região era, de fato, muito bonita. O sítio, entretanto, não. Da casa às plantações, tudo era muito mal cuidado, dando a sensação de ter várias partes abandonadas. Pra você ter uma ideia, havia quatro ou cinco carros apodrecendo ao ar livre - provavelmente porque eles não estavam dispostos a pagar algum imposto ou a levá-los até um ferro-velho na cidade.

Quanto ao trabalho, não nos contavam o que faríamos no dia seguinte. Na primeira noite, perguntei durante o jantar. “Agora, comemos; depois falamos de trabalho”, foi a resposta ríspida do pai. Mas tudo que ele disse "depois" foi a hora em que deveríamos estar em pé de manhã. Após isso, seguiram os três com a atenção voltada ao jogo de futebol na TV.

Praticamente, ninguém conversava conosco. Até quando estávamos nas plantações de tomates ou de uvas, por exemplo, o gigante da floresta se limitava a movimentar as mãos ou ferramentas e murmurar coisas como “like this” ou “after”, como se fôssemos de planetas diferentes. Detalhe: eu já falava italiano. Apesar disso, naquele contexto, não seria difícil para um brasileiro entender o que “così” e “dopo” ou “poi” significam.

Não nos informavam sobre nossas horas de trabalho nem nos davam oportunidade de planejar nossos dias. Nos usavam duas ou três horas de manhã; depois o mesmo tanto à tarde. Nos intervalos, não podíamos usar internet nem telefone. A cidade era longe demais para irmos até lá a pé. E, claro, só tínhamos três refeições diárias – sempre com eles, a TV ligada e os cigarros acesos.

Fuga

Encurtando a história, no final do segundo dia, um casal estadunidense que vivia no primeiro andar do sobrado se aproximou de nós. Eles já estavam acostumados com jovens estrangeiros decepcionados como nós e se prontificaram a nos ajudar a, literalmente, fugir dali.

Ligaram para um amigo em outra fazenda e pediram que ele nos acolhesse. Quando? O mais rápido possível. De repente, bateram à porta. Fabio e o pai tinham escutado nossas conversas e desceram indignados para evitar que fôssemos embora dali.

A discussão foi feia, mas, na manhã seguinte, saímos sem falar com nenhum deles e Bruce, o estadunidense solícito, nos levou até a cidade, de onde seguimos em caronas até Pescara, onde vivemos “felizes para sempre” por duas semanas na casa do Rafaelle – este, sim, um “cara 10” com esposa, filho, casa, hábitos e amigos adoráveis!

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