Os mortos de Varanasi

Em dois meses andando pela Índia, minha irmã e eu já tínhamos visto a caótica Mumbai, a capital Déli, o deserto do Rajastão, o imponente Monte Evereste, o maravilhoso Taj Mahal e muito mais. Aos poucos, já começávamos a achar que aquele país exótico não tinha mais muito a oferecer aos nossos olhos famintos.

Algo que ainda não havíamos visto, porém, nos aguardava naquela manhã, quando acordamos bem cedo e, ansiosos, deixamos o hotel no centro de Varanasi e fomos caminhando em direção ao Rio Ganges.

Não era a água que buscávamos, e sim a fumaça que parecia ganhar mais consistência conforme os raios do sol se tornavam mais fortes.

Enquanto seguíamos beirando o Ganges, desviávamos dos estrumes de vacas e búfalos e víamos como os indianos se banhavam, escovavam os dentes e lavavam suas roupas na mesma água escura do rio.

E isso não era tudo. A fumaça ia ficando mais forte e, aos poucos, podíamos sentir também seu cheiro. Carne. Sim, tinha cheiro de carne. Não de gado ou de porco, mas de gente.

Não era permitido fotografar, mas qualquer um podia ver o que eles faziam ali. E eu, curioso, me aproximei o máximo que pude e passei a assistir a tudo que acontecia.

Cadáver

Cantarolando, um grupo de pessoas se aproximou carregando um cadáver e o colocou sobre um punhado de madeiras. Era um homem com o corpo enrolado em um pano laranja e amarrado em uma maca de bambu. O rosto e os pés estavam descobertos.

Alguém acendeu a fogueira. Eu estava a uns 3 ou 4 metros de distância, com os olhos atentos, provavelmente refletindo as luzes do fogo. Em segundos, o cadáver ficou sem cabelos e sem o tecido que o envolvia. Os olhos perderam a cor branca e a forma redonda, a pele começou a derreter e, em meio às chamas e aos estalos típicos de uma fogueira, eu tinha relances dos músculos, órgãos e ossos sendo fritos e assados.

Pouco tempo depois, só havia restado cinzas e carvão misturado com ossos. Olhando ao meu redor, tive a impressão de ser o único que se espantava com aquelas cenas todas. Afinal de contas, aquela gente estava acostumada ao ritual que, todas as manhãs, se repete dezenas ou centenas de vezes como parte da crença hindu de várias vidas.

O que aconteceu em seguida foi muito rápido: as cinzas foram jogadas no rio, novos pedaços de madeira formaram uma outra fogueira e, em poucos minutos, lá estava mais um cadáver prestes a ser cremado ao ar livre.

Pra indianos pobres e miseráveis, a madeira pode custar uma fortuna. Por isso, muitos deles enrolam os parentes mortos em pedras e simplesmente os jogam no Ganges. É por isso que ver corpos ou partes deles boiando no rio ou encalhados nas margens é algo comum em Varanasi.

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